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“O notório saber colabora gravemente com a desvalorização dos professores” afirma Daniel Cara

Anunciada no dia 22 de setembro, a Medida Provisória (MP) 746 de ‘deforma’ do ensino médio figura como um dos principais retrocessos impostos pelo governo golpista de Michel Temer. Dentre os principais pontos do documento, um dos mais polêmicos de acordo com profissionais da educação e especialistas, é o que se refere ao notório saber.

Enquanto o Plano Nacional da Educação (PNE) estabelece que é preciso garantir que todos professores e professoras do ensino básico possuam graduação na área de conhecimento em que atuam, a MP passa a permitir que profissionais com notório saber possam dar aulas de conteúdos de áreas afins à sua formação.

Para entender um pouco mais a respeito do tema, a reportagem da UBES conversou com o membro titular do Fórum Nacional de Educação e coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara.

Cara, que tem extensa pesquisa e experiência no campo do ensino, é doutorando em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e foi membro da direção da Campanha Global pela Educação entre os anos de 2007 a 2011, além de ter integrado o Comitê Diretivo da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação nos anos de 2009 a 2012.

UBES: O que é e do que se trata o notório saber?

Trata-se do reconhecimento que uma pessoa recebe sobre determinada área do conhecimento, sobre determinada disciplina. Por exemplo, um médico tem ou deve ter ao menos notório saber em biologia, em química, em física. São questões que ele deve conhecer.

A ideia do notório saber no magistério significa você dizer que todo mundo que conhece muito sobre uma determinada questão é um bom professor e ,é claro, isso não é verdade. Na Universidade, por exemplo, é muito comum você ter professores doutores que conhecem muito sobre uma disciplina, mas têm uma total incapacidade de dar aulas. Para dar uma boa aula é preciso dominar a didática, é preciso conhecer o processo de ensino-aprendizagem. Isso se aprende nos cursos de pedagogia e nas demais licenciaturas.

UBES: A medida pode prejudicar a aplicabilidade das disciplinas convencionais, que já integram o currículo das escolas, como português, matemática, história?

O notório saber hoje está exclusivo para a educação profissional. Isso também está errado porque o professor da educação profissional tem de ter habilidade didática, ele tem de entender da relação de ensino-aprendizagem, tem de conhecer os teóricos e clássicos da educação que falam sobre como dar uma boa aula, sobre como envolver o aluno e sobre como deve ser uma aula que funciona, que dialoga com o estudante e que o ajuda a construir o conhecimento. Isso tudo não está garantido na medida provisória. O documento que prevê as mudanças está extremamente mal redigido, mas o itinerário de educação profissional seria o único a receber os professores com notório saber. Por estar mal redigido, isso abre margem para uma flexibilidade maior, para que os sistemas de ensino considerem que para todas as disciplinas o notório saber entraria em vigor. Isso é um absurdo, já que a educação precisa preservar o conhecimento específico, que é a questão da didática.

 

“Caso aprovada, a reforma irá prejudicar os estudantes em favor da influência de algumas entidades empresariais que atuam no campo da educação”

 

UBES: O notório saber pode colaborar com a desvalorização do profissional da educação?

O notório saber irá colaborar gravemente com a desvalorização dos professores porque não reconhece aquilo que os profissionais da educação têm em específico, que é o estudo do processo de ensino-aprendizagem, da didática. Esse estudo precisa ser valorizado! O Brasil é um país que desvaloriza a pedagogia, que a considera um acessório e ela não é um acessório. A pedagogia é algo central no processo educacional.

UBES: O projeto pode comprometer a aprendizagem, a formação dos estudantes brasileiros?

A medida provisória pode prejudicar a aprendizagem dos estudantes na medida em que ela desconstrói o ensino médio, que é ruim hoje, mas propõe uma escola pior. O projeto apresenta cinco itinerários formativos: ciências da natureza, ciências humanas, linguagens, matemática e educação profissional. O problema é que esses cinco itinerários não irão ser ofertados em todas as escolas, ou seja, os estudantes não terão acesso ao conhecimento que, por ventura, eles venham a escolher.

Além disso, flexibilidade de fato é você dar aos estudantes a possibilidade de escolher matérias optativas, como acontecem nas faculdades. Isso seria de fato a flexibilidade: garantir que todas as escolas ofertariam todas as áreas do conhecimento, algo que não está posto na MP. A partir do momento em que as escolas oferecessem todos os campos do conhecimento, elas o ofertariam de modo específico. Por exemplo, em História poderia haver uma aula sobre história do feminismo, sobre história do trabalho, história dos trabalhadores, história da influência africana no Brasil.

Enfim, o projeto político-pedagógico da escola terá de ser fortalecido, porque com uma flexibilidade, a escola terá de criar essas disciplinas optativas, pensar sobre o currículo e terá de garantir os componentes curriculares através de matérias optativas. Esse seria o melhor caminho, mas o governo erra ao propor esses itinerários formativos que na verdade geram uma flexibilidade inflexível aos estudantes.

 

“A ideia do notório saber no magistério significa você dizer que todo mundo que conhece muito sobre uma determinada questão é um bom professor e, é claro, isso não é verdade.”

 

Daniel Cara_ Especialista


UBES: Quais serão os critérios para determinar que pessoas poderão lecionar no ensino médio? E quem será responsável por essa decisão?

Naquilo que diz respeito ao notório saber, os responsáveis serão os sistemas de ensino, os conselhos de educação e a secretaria de educação. Isso é bastante grave, é preciso ter critérios nacionais porque o direito à educação é um direito nacional e a União tem a prerrogativa de determinar as diretrizes e bases da educação do país, segundo o artigo de número 23 da Constituição Federal.

UBES: Considera importante enfatizar algo a respeito do notório saber, de suas consequências?

É importante acrescentar, por fim, que a medida provisória gera uma educação de baixa qualidade. Ela irá mais desorganizar do que organizar, mais prejudicar que favorecer a escola. O projeto não parte da compreensão dos estudantes, daquilo o que eles acreditam que seja necessário para o ensino médio. É claro que numa reforma educacional, não são apenas os estudantes que devem se pronunciar. Toda a sociedade deve opinar sobre uma reformulação educacional, especialmente estudantes, professores, formadores dos profissionais da educação, pais e etc. A medida provisória, porém, não constrói uma proposta de ensino médio coletiva, ela propõe um ensino médio completamente alheio ao interesse dos estudantes.

O método de tramitar uma matéria dessa envergadura, através de um mecanismo que denota regime de urgência, é errado e é inédito. Caso aprovada, a reforma irá prejudicar os estudantes em favor da influência de algumas entidades empresariais que atuam no campo da educação e que defendem essa MP desconhecendo os sistemas públicos de ensino. Temos, assim, um MEC submisso ao interesse de setores que desconhecem a educação pública de qualidade.